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Garrafa 536 – Testemunha silenciosa   Leave a comment

O alarme está ajustado para despertar às seis horas, mas normalmente já estou acordado um pouco antes disso. Tem sido assim pelo menos desde o início dos anos sessenta.

Costumava despertar às cinco e meia, com o céu ainda escuro, para entrar antes das sete no Colégio Militar. Nos anos setenta, o toque de alvorada do corneteiro soava na Escola Naval às seis, mas o som das gaivotas da Ilha de Villegagnon já entrava pela janela aberta bem antes disso, junto com a brisa impregnada de maresia da Baía de Guanabara. Depois de formado, essa se tornou a rotina para chegar ao trabalho antes das oito, deixando, antes, as meninas no colégio. E isso se entendeu até o início de 2002, ou seja, por mais de quarenta anos.

Após a transferência para a reserva, iniciei nova carreira com outras atividades profissionais e maior flexibilidade com relação a horários, que ficam agora a meu quase exclusivo critério. Mas o hábito de acordar cedo se mantém, apesar de não ser mais tão necessário. Agora é uma escolha do corpo!

Lembro-me de, na infância, precisar de pelo menos dez horas de sono por dia. E esse número foi sendo reduzido para nove na adolescência, e para oito na juventude e início da vida adulta. A partir dos anos 80, seis horas já eram suficientes. Hoje, dificilmente adormeço antes de uma da manhã. Fico bem disposto com apenas cinco horas de sono por noite. Indicaçao da inexorável aproximação da velhice, dizem. Parece que ficamos com mais sede de vida, ao pressentirmos o seu fim, e queremos dormir menos para viver mais. Quem sabe?

Quando estou em casa, ao levantar da cama, meus primeiros passos costumam me levar direto para a varanda, que aponta para o sul da paisagem da Barra da Tijuca. Fico de olho no céu em busca de nuvens cor de rosa ou acinzentadas, ansioso pelo contato com as primeiras luzes da manhã que aparecem do lado esquerdo, a leste, na direção de onde fica a Praia de São Conrado. E procuro pistas sobre a intensidade e direção do vento, no movimento das folhas dos coqueiros, amendoeiras e mangueiras da pracinha, como se ainda estivesse no convés de algumas das embarcações que tripulei ou comandei. As gaivotas silenciosas ficam muito alto no céu matinal e a algazarra da passarinhada é uma composição do canto de sabiás, cambaxirras e de muitos bem-te-vis. Sua plumagem em tons de marrom e amarelo é percebida por entre os galhos e troncos que se mostram já bem secos ou ainda molhados, indicando como transcorreu a madrugada e como promete ser o novo dia, se já choveu ou se teremos céu azul, nublado ou chuvoso.

Aqui no sítio, onde já estou há alguns dias, a rotina é parecida. Salto da cama e corro para fora da casa que é cercada de muitas árvores diferentes. São jaqueiras, mangueiras, jambeiros, o bananal e um grande bambuzal que nos protegem dos ventos que sobem a partir do fundo do vale, a oeste. Preciso me afastar de suas paredes e telhado para olhar em direção das pequenas elevações cercadas de vegetação que cercam a casa por cerca de cento e oitenta graus, na direção do nascente. O sol presencial só depois das oito, em dias de céu claro, apesar de anunciado a partir das quatro pelos galos da vizinhança. Aqui é mais fácil ver o dourado do poente que o do nascer do sol, já que o setor oeste é mais livre de obstáculos próximos, e as montanhas avistadas no fundo do vale ficam muito distantes, no limite do horizonte. No sítio, a sinfonia matinal de passarinhos também é extremamente variada mas, ultimamente, tem sido abafada pela estridência insolente de bandos de maritacas.

Hoje é uma data especial em que é celebrado o dia dos pais e lembro-me do meu bom amigo que já nos deixou há vinte anos. Teria completado cem anos, se ainda estivesse entre nós, e despediu-se precocemente deste mundo aos oitenta. Estou aproveitando a companhia do meu sogro, o patriarca da família que tem noventa e três, e hoje acordou mais cedo para moer cana para todos nós. Meu filho mais velho, que será pai pela primeira vez a partir de janeiro já me chamou em vídeo agora há pouco, diretamente da Alemanha, onde vive. Estava fazendo a barba do meu sogro durante a chamada, e conversamos, ao mesmo tempo, três gerações: avô, pai e filho. Muito riso e pouco sizo! Minhas filhas já estão a caminho, subindo a serra para participar do almoço em família, regado a caldo de cana. Trazem o pequeno Damião, netinho amado, representante da quarta geração que em breve terá a companhia de um priminho ou priminha. Seu sexo, para arrepio dos idiotas defensores da ideologia de gênero, ainda não sabemos, mas sim descobriremos em breve. Vida que segue seu curso!

Sou grato por isso!

De olho na entrada do sítio, no fim da manhã, permaneço pensativo aguardando o barulho e a visão do carro que traz minhas filhas, genro e neto. Como testemunha silenciosa, sinto e ouço o vento mensageiro.

Chegaram!

Hoje, mais cedo, rabisquei no meu bloco de notas:

ah! no bambuzal!
de onde? para onde vai
rajada de vento?

Eduardo Leal

Foto de Eduardo Leal

Garrafa 503 – Arco esticado, íris brilhante!   Leave a comment

Em busca de inspiração para minhas brincadeiras com as palavras com a métrica do haicai, volta e meia  minha atenção é despertada pela percepção de alguma sensação corporal inesperada; pela visão de alguma imagem interessante ou pela leitura de algum texto instigante; pela escuta de algum som ou música suave ou surpreendente; pela detecção da presença de algum odor agradável ou repulsivo; ou pela degustação de alguma comida saborosa ou estranha ao próprio paladar.

E, muito frequentemente, isso ocorre pela sinestesia, ou a ocorrência simultânea de algumas dessas situações: uma sensação corporal que evoca uma imagem armazenada na memória afetiva, ou vice-versa; a associação do odor e do sabor de determinadas comidas ou bebidas com os lugares e pessoas em companhia de quem elas foram degustadas; ou de um perfume suave e nuvemovente percebido em uma rua movimentada, o que nos faz interromper nossa apressada caminhada, instintivamente mover nosso corpo todo na direção daquela “inspiração” e, muito mais rapidamente do que qualquer promessa enganosa de cartomantes inescrupulosas, traz sim a pessoa amada “de volta” em um segundo!

A visão de um belo arco-íris,  quando o sol explodiu em sete cores e revelou então os sete mil amores que o Tom guardou pra dar para Luiza, despertou minha memória musical. E as gotículas de água ainda em suspensão na atmosfera de outono, em uma tarde chuvosa, trouxeram de volta também as diversas lendas sobre um misterioso e desejado pote de ouro e brilhantes escondido na extremidade distante daquele arco fugaz e colorido. E pensamentos sobre quem possivelmente teríamos que nos tornaro que teríamos que fazer para chegar até lá, e resgatar o cobiçado premio por nossa eventual coragem e persistência. Tornar-me quem, senão eu mesmo? Fazer o que, senão ação amorosa? Fazer quando, senão agora?

E minha imaginação evocou também outro tipo possível de arco esticado em seu limite pelo filosófico arqueiro zen Eugen Herrigel, de minha memória literária. E a flecha de prata, aguardando a súbita liberação, carrega a sua própria alma, sua mensagem de vida e morte lançada na escuridão silenciosa da noite, enquanto a única fonte de luz perceptível naquele instante é o brilho interno da íris do arqueiro.

Apenas outro tipo de conexão arco-íris…

Pausa para um breve haicai:

arco esticado,
com a flecha de prata,
íris brilhante…

Eduardo Leal
Ilustração de autor desconhecido adaptada por Eduardo Leal
Instruções de utilização: Ouvir Luiza, no piano e voz de Tom Jobim

Íris brilhante 3

Garrafa 426 – Acesso garantido   Leave a comment

Nas últimas semanas, vários amigos e amigas sofreram perdas de pessoas queridas.

Com muito pouco a ser dito nesses momentos, ofereço meu abraço e minha presença, mesmo que às vezes, pelas grandes distâncias envolvidas, apenas de maneira virtual e espiritual.

Para os que ficam, quase sempre uma sensação de que estão cada vez mais sós, é o que vejo e ouço em alguns comentários e me compadeço da sua dor, que é minha também.

Para os que se vão, quem sabe as coisas não ficam mais claras, quando vistas de um plano superior? Ou não?

Um sopro de vento suspira ao meu ouvido:

ao grande mistério,
garantido acesso,
no cemitério…

Eduardo Leal
Foto de autor desconhecido

Cemitério visto do alto

Garrafa 414 – Vácuo quântico   Leave a comment

do Nada, do vento,
trajetórias de vidas,
espaço, tempo…

Eduardo Leal
Ilustração de autor desconhecido

velocidade-variavel-da-luz

Garrafa 381 – De repente, seu perfume…   Leave a comment

perfume no vento…
ah! de outro momento
você invento.

Eduardo Leal
Ilustração de autor desconhecido

O seu perfume

Garrafa 349 – Acenos de mão   2 comments

Mais uma madrugada insone, pensamento disperso e, ao mesmo tempo, com a atenção volta e meia guiada pelos ruídos, vultos, sombras e luzes que entram pela janela do quarto, enquanto passam silenciosos os minutos e as horas…

Na lua nova, por três dias ela se torna escura e “desaparece” para renascer e ressuscitar, outra vez, em um novo ciclo.

Lua escura vagando noite adentro e em algum lugar escondida, céu sem nuvens e o Cruzeiro do Sul cintilando acima das árvores fracamente iluminadas pelos postes da pracinha… Sim, minha paisagem aponta para o sul! Sul do ego, sul da noite, sul do planeta, sul da galáxia, sul do Universo… E tão ao sul como um sultão, permaneço ao sul de mim mesmo.

As folhas de duas amendoeiras, algumas bem verdes e outras em diversos tons de marrom, que preservo na memória do dia que passou e que não volta mais, se destacam nessa paisagem noturna, todas agora em tons de cinza claro ou mais escuro.

Olhar desfocado no intervalo entre dois pensamentos, de repente a brisa fresca da madrugada de inverno move gentilmente as folhas das amendoeiras. E parece que uma multidão de mãos, em suave sincronia, acena silenciosamente pra mim do sul da noite, do sul do planeta… E percebo também que, às vezes, algumas folhas se desprendem e, parecendo ainda acenar, só que agora de maneira mais confusa, desaparecem na escuridão…

Quem serão essas pessoas? Porque me acenam na penumbra? O que podem querer me dizer? Amigos e amigas que conheci e nunca mais verei? Onde estarão e para onde irão? Parentes, parceiros e parceiras que se foram ou se vão? Amores que nunca terei?

Surpreendo-me acenando de volta, grito preso na garganta, gesto impensado com o coração sobressaltado… E me levanto silencioso, em busca de papel e lápis.

Pausa para um breve haicai…

folhas ao vento.
de pessoas que se vão,
acenos de mão…

Eduardo Leal
Foto de autor desconhecido
Instruções de utilização: Ouvir “Folhas ao Vento” na voz de Lanna Rodrigues

Garrafa 286 – Sopro do vento   1 comment

sopro do vento
roseira se agita… ah!
perfume de flores…

Eduardo Leal
Foto de autor desconhecido

Publicado 14/02/2012 por Eduardo Leal em Fotografias, Haicai, Haikai, Haiku

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Garrafa 265 – Vento solar   Leave a comment

salto do jaguar
meu impulso de amar
um vento solar

Eduardo Leal
Fractal de Eduardo Leal – Solar wind 3
Instruções de utilização: Ouvir “Carpet of the sun” na voz de Annie Haslam com Renaissance

Jaguar 2

Garrafa 222- A-ah, Matsushima, ah!   Leave a comment

Estive na região nordeste do Japão com minha família, em janeiro de 2008, mais precisamente em Sendai, Matsushima e Shiogama e acompanho com tristeza e preocupação as informações que chegam a cada instante dando conta do maremoto e sua subsequente tsunami, ocorridos no dia de ontem naquela região. Preocupação com a falta de notícias de alguns amigos e amigas que fizemos por lá e tristeza pelas milhares de vidas interrompidas e também pelos prejuizos materiais e culturais decorrentes dessa tragédia.

Além das imagens de devastação em Sendai e arredores, minhas pesquisas pela Internet revelaram, até o momento, apenas duas fotos de trens descrrilados em Matsushima (link1 e link2), o que me faz pensar na triste possibilidade de danos ainda não revelados, por dificuldades de acesso ao local.

Trago comigo as melhores lembranças, no sopro gelado de uma fria manhã de inverno, de um dos lugares mais bonitos que já conheci. Fecho os olhos por um momento e vejo a Baia de Matsushima com suas centenas de ilhas rochosas cobertas de pinheiros, sendo sobrevoadas por gaivotas que insistem em seguir o rastro deixado pelo nosso barco e nos observar com olhares curiosos e inquisidores. Vejo ainda alguns dos seus pequenos tesouros arquitetonicos e culturais à beira mar tais como o Templo de Zuigan-ji e seu silencioso e misterioso jardim zen. Será que meu firme desejo de regresso, da próxima vez na primavera, será interrompido por um outro vento gelado, desta vez carregado de radioatividade, tornando essas paisagens proibidas por décadas, como as cercanias de Chernobil? Um calafrio incomodo me percorre a espinha!

A partir de 1689, durante cerca de quatro anos, o sensível poeta Matsuo Basho percorreu as trilhas da região norte da ilha de Honshu, no arquipélago do Japão, tendo como iluminação apenas o clarão da lua cheia… Durante sua passagem por Matsushima, quase sem palavras, deixou-nos o registro de sua embevecida admiração, por meio do seguinte haikai:

Ah Matsushima!
A-ah, Matsushima, ah!
Ah, Matsushima!

 

Revendo as fotos que tirei na ocasião de minha breve visita ao jardim zen do templo de Zuigan-ji, uma delas me chama a atenção, como distantes ecos premonitórios dos sábios monges que o idealizaram, com a imagem do arquipélago do Japão cercado de tsunamis, nas águas nada tranquilas do Pacífico…

A-ah, Matsushima, ah…

Jardim Zen em Zuigan-ji

Foto de Eduardo Leal

Garrafa 188 – Um pensamento   1 comment

um pensamento,
respiração e vento,
depois, o silêncio…

Eduardo Leal
Ilustração de autor desconhecido
Instruções de utilização: Ouvir “Mudança dos ventos” na Voz de Nana Caymmi