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Garrafa 545 – Trens, barcos e aviões   Leave a comment

Garrafa 541 – No tabuleiro da vida   1 comment

Retornando de viagem, o por do sol do dia anterior tinha sido espetacular. Horizonte cor de rosa chá por cima da silhueta da cidade do Rio de Janeiro, quando avistado da ponte Rio-Niteroi. É ótimo o sentimento de voltar pra casa, mesmo já sentindo saudades das pessoas que tinha ido visitar por uns poucos dias, foi o que pensou enquanto dirigia e reconhecia a paisagem cada vez mais familiar a cada curva da estrada.

Na típica manhã de outono, depois de uma noite de céu estrelado, iluminado por lua minguante gibosa e de ar fresco e salitrado, sentiu-se reconfortado com a visão do esperado céu azul com poucos flocos de nuvens brancas acima das árvores da pracinha, quando espreitada pela janela da biblioteca.

Leu em algum lugar, provavelmente em uma mensagem postada por um bom amigo, que ao longo dos próximos dias ainda se poderia avistar um alinhamento incomum dos planetas Júpiter, Vênus, Marte e Saturno, pouco antes do nascer do sol. Quem sabe amanhã?

Tudo isso, ou nada disso fez com que sentisse vontade de rever velhos escritos, cartas, bilhetes, livros e anotações espalhadas pelas prateleiras da biblioteca, sem nenhum alinhamento específico. Uma carta em especial o fez lembrar de uma cena lida no memorável romance de Gabriel Garcia Marques “O amor nos tempos do cólera” em que um dos personagens encontra um tabuleiro com uma partida de xadrez inconclusa, nos aposentos de um amigo recém falecido.

Um haicai ainda não postado, rabiscado na lateral da página do livro no dia 08 de abril de 2020, foi inspirado pela leitura da cena e evocado pela leitura da carta.

Esta é a postagem do dia de hoje:

No tabuleiro,

Partida inconclusa,

Morte prematura…

JEAL

Ilustração de autor desconhecido

No tabuleiro da vida

Garrafa 540 – Ardia nos seus olhos um sorriso   1 comment

Já avançamos no primeiro mês deste trimestre de outono, iniciado em 19 de março, e me dou conta que volta e meia o tema do amor retorna com força nesta época do ano. Reli diversas postagens realizadas nos meses de abril, desde o início do lançamento dessas garrafas com mensagens, no ano de 2005.

Este mês não será diferente.

Iniciei a leitura de “Estudos sobre o amor” de José Ortega Y Gasset, o que me levou também a buscar, em um sebo argentino, um exemplar de “De Francesca a Beatrice” de Victoria Ocampo, publicado em 1924, e já recebido. E encontro em ambos referências à obra de Dante Alighieri “A Divina Comédia” (com seus três volumes “Inferno”, “Purgatório” e “Paraiso”) e fiquei profundamente tocado pelo verso que transcrevo a seguir.

É apenas este o conteúdo que desejo transmitir neste post:

Chè dentro agli occhi suoi ardeva un riso

tal, ch’io pensai co’miei toccar lo fondo

della mia grazia e del mio paradiso.

***************************************

Ardia nos seus olhos um sorriso,

que com os meus pensei tocar o fundo

de minha graça, de meu paraíso.

(Paraiso, Canto XV, Versos 34 a 36)

Diga apenas “eu também”, quem já teve a oportunidade de encontrar olhos assim.

Eduardo Leal

Garrafa 522 – Diagnóstico   Leave a comment

Ele sempre teve muito boa saúde.

Subiu em muros, em árvores, soltou pipa no telhado e explorou os terrenos baldios da vizinhança em companhia de seus amigos de infância. Morou em muitas casas diferentes, ao invés de viver encerrado em apartamentos. Praticante de alguns esportes radicais como artes marciais e escalada, passou pela juventude com peso proporcional à altura, indicador que se mantém assim até hoje. Há muito tempo realiza caminhadas diárias, se alimenta de maneira balanceada, pratica a meditação mais de uma vez por dia e, talvez, o item mais importante de sua rotina: procura estabelecer e manter apenas relacionamentos que considera saudáveis.

Há mais de quinze anos, quando encerrou uma carreira bem sucedida de mais de trinta anos e iniciou outras tantas, que seus dias transcorrem mais ou menos assim, como descrito nessa postagem de um bom amigo e confidente, feita há alguns anos atrás: Poesia do cotidiano.

Tudo isso contribuiu para que as enfermidades sempre passassem ao largo. Até agora, nenhuma passagem por salas de cirurgia também.

Isso, até que um dia, em um exame de rotina, surge algo que parece ameaçador e que merece ser investigado mais detalhadamente. O que poderia ter contribuído para uma baixa no sistema imunológico e o surgimento de problemas, apesar de uma rotina aparentemente saudável?

Bem, desde o ano passado dois bons amigos se foram, depois de um diagnóstico ameaçador e a batalha final perdida para o mesmo tipo de doença. Ótimos companheiros de trabalho e de vida, ele sente muita falta das boas conversas que mantinham, sempre que se encontravam ou falavam pelo telefone. Uma pessoa da família muito querida também se foi, essa de maneira mais esperada depois de uma longa e amorosa rotina de cuidados pelos familiares mais próximos, que se revezaram ao seu lado até o ultimo momento. Três luzes brilhantes que amenizavam a escuridão da noite e de repente se apagaram, e o comparecimento a três dolorosas cerimonias de sepultamento. E, é claro, sua companheira de vida também recebeu um diagnóstico parecido com o seu há mais tempo, o que tem inspirado acompanhamento e cuidados especiais.

Todas essas questões são mais pessoais, sem falar do ambiente mais amplo, da crise de inversão de valores por que passa a nossa sociedade e da calamitosa situação de corrupção das “lideranças” do país, contexto que será herdado pelos seus filhos e netos quando ele se for, e que o enchem de vergonha e revolta a cada dia que passa, apesar da rigorosa dieta de notícias a que se submete regularmente. Revolta e vergonha podem contribuir para o surgimento de doenças? Pode apostar que sim!

Pode ser tudo isso, algo disso, ou nada disso. Quem sabe seja apenas a programação dos genes na herança recebida pelo DNA dos seus antepassados, que contenha alguma rotina destrambelhada que tenha sido disparada pelas condições atuais.

Uma pesquisa na Internet, para o bem e para o mal, quando se busca com certas palavras-chave de um laudo de tomografia computadorizada pode trazer como resposta coisas muito curiosas tais como tabelas de expectativa de vida, caso se confirme determinado diagnóstico. Huummm, três ou quatro anos apenas? Quem sabe?

Bem, primeiro o diagnóstico tem que ser confirmado, com muitos exames complementares.

Enquanto isso, buscando em todas as ocasiões manter alta intensidade e baixo apego, valem os ensinamentos de um velho e sábio professor, que também já nos deixou, que se ajustam a qualquer situação:

Entregar, confiar, aceitar e agradecer. (ao, no, o que vier do, e ao Universo)

Afinal, acreditando que o amor é o nosso destino verdadeiro, ele até agora teve uma boa vida. Amou e foi amado, ama e é amado.

Pausa para um breve haicai:

diagnóstico:
quimio e rádio?
isso muda tudo…

Ou não!

Eduardo Leal
Foto de autor desconhecido

Abismo

Garrafa 504 – Errando melhor   2 comments

Saber de cor é como saber sem fazer esforço para evocar o conteúdo do conhecimento, quando esse conhecimento provém de uma sabedoria corporal, diretamente do “coração”. Em latim, “cor” quer dizer coração.

E de maneira semelhante à empregada na língua portuguesa, em inglês, a expressão “to know by heart” tem exatamente o mesmo sentido e usa as mesmas palavras, “saber com o coração”. E o mesmo se dá em francês, com a expressão “savoir par coeur”, que significa “saber por intermédio do coração”.

Mas o que podemos ou devemos fazer para alcançarmos esse nível de aprendizado, a ponto de saber com o coração?

Em um dos modelos de “Ciclo de Aprendizado” mais conhecidos, podem ser identificadas quatro fases distintas para alcançarmos o completo domínio de algum tipo de conhecimento:

a) No início do processo de aprendizado, seja lá do que for, há uma fase em que se pode dizer que “nem sei que não sei”, um momento de desconhecimento total, de completa ignorância a respeito do nosso próprio desconhecimento e até mesmo da existência daquele determinado tema;

b) Até que descobrimos que há “algo” que não sabemos, que há um tema de que antes nunca tínhamos ouvido falar, e sobre o qual tudo desconhecemos, iniciando a fase do “sei que não sei”;

c) Se decidimos então aprender a respeito desse tema e ultrapassar essa segunda fase, saímos em busca de informações a respeito e, principalmente, começamos a colocar em pratica esse novo saber progressivamente adquirido, até que chega um momento em que podemos dizer que “sei que sei” algo a respeito desse tema e apresentamos algum grau de domínio a respeito do assunto em questão; e

d) Finalmente, a prática continuada e prolongada nos leva então à ultima fase do processo, com o completo domínio – com toda a maestria – no trato da questão. Nos tornamos “um mestre”. O tema já foi introjetado, sabemos de cor, sabemos com o coração, e não mais apenas com o pensamento. E podemos dizer até que “nem sei que sei”.

Como já mencionado no post da Garrafa 502 – O fazer é lei!, nas fase c) e d) do Ciclo de Aprendizado, a ênfase está no fazer, na prática continuada e prolongada.

Seres imperfeitos que somos, em contínuo processo de desenvolvimento e evolução, até mesmo um mestre é passível de cometer erros e enganos. Mas erra melhor! Erra menos! Comete erros novos, ao invés de repetir os mesmos erros! Está, a cada passo, mais próximo da perfeição!

Pausa para um breve haicai:

errando melhor,
vou querendo acertar,
que não sei de cor.

Eduardo Leal
Ilustração de autor desconhecido

Errando melhor

Garrafa 503 – Arco esticado, íris brilhante!   Leave a comment

Em busca de inspiração para minhas brincadeiras com as palavras com a métrica do haicai, volta e meia  minha atenção é despertada pela percepção de alguma sensação corporal inesperada; pela visão de alguma imagem interessante ou pela leitura de algum texto instigante; pela escuta de algum som ou música suave ou surpreendente; pela detecção da presença de algum odor agradável ou repulsivo; ou pela degustação de alguma comida saborosa ou estranha ao próprio paladar.

E, muito frequentemente, isso ocorre pela sinestesia, ou a ocorrência simultânea de algumas dessas situações: uma sensação corporal que evoca uma imagem armazenada na memória afetiva, ou vice-versa; a associação do odor e do sabor de determinadas comidas ou bebidas com os lugares e pessoas em companhia de quem elas foram degustadas; ou de um perfume suave e nuvemovente percebido em uma rua movimentada, o que nos faz interromper nossa apressada caminhada, instintivamente mover nosso corpo todo na direção daquela “inspiração” e, muito mais rapidamente do que qualquer promessa enganosa de cartomantes inescrupulosas, traz sim a pessoa amada “de volta” em um segundo!

A visão de um belo arco-íris,  quando o sol explodiu em sete cores e revelou então os sete mil amores que o Tom guardou pra dar para Luiza, despertou minha memória musical. E as gotículas de água ainda em suspensão na atmosfera de outono, em uma tarde chuvosa, trouxeram de volta também as diversas lendas sobre um misterioso e desejado pote de ouro e brilhantes escondido na extremidade distante daquele arco fugaz e colorido. E pensamentos sobre quem possivelmente teríamos que nos tornaro que teríamos que fazer para chegar até lá, e resgatar o cobiçado premio por nossa eventual coragem e persistência. Tornar-me quem, senão eu mesmo? Fazer o que, senão ação amorosa? Fazer quando, senão agora?

E minha imaginação evocou também outro tipo possível de arco esticado em seu limite pelo filosófico arqueiro zen Eugen Herrigel, de minha memória literária. E a flecha de prata, aguardando a súbita liberação, carrega a sua própria alma, sua mensagem de vida e morte lançada na escuridão silenciosa da noite, enquanto a única fonte de luz perceptível naquele instante é o brilho interno da íris do arqueiro.

Apenas outro tipo de conexão arco-íris…

Pausa para um breve haicai:

arco esticado,
com a flecha de prata,
íris brilhante…

Eduardo Leal
Ilustração de autor desconhecido adaptada por Eduardo Leal
Instruções de utilização: Ouvir Luiza, no piano e voz de Tom Jobim

Íris brilhante 3

Garrafa 500 – Quinhentos tons de celebração   3 comments

Esta é uma mensagem de celebração pelas 500 postagens realizadas desde outubro de 2005, quando o Blog “Três Coisas” marcou sua presença na Internet pela primeira vez, com o lançamento da Garrafa 1 – Três Coisas, que incluía no corpo do texto a Garrafa 0 – Primeiras Palavras. Só em 2011 o conteúdo da “Garrafa 0” foi replicado em uma página separada, e renomeada como “Garrafa Zero – Minhas Razões“.

E sei que esse não é um número tão grande assim. São 500 postagens em 155 meses, o que me diz que, em média, teria me manifestado de alguma maneira por três vezes em cada mês. Mas alterno períodos em que publico um post todo dia, como ocorreu em todos os dias do mês de abril de 2012, com outros de silêncios mais prolongados, até de um ano inteiro, como ocorreu agora, desde abril de 2015. E a quantidade de posts ou frequência de publicação não são a minha preocupação principal. Publico, quanto sinto que tenho algo relevante a dizer. E assim tem sido.

Com um pouco mais de dez anos de existência do Blog, muita coisa aconteceu comigo e com o meu entorno pessoal e profissional. Mas o conjunto de temas utilizados nas postagens não sofreu muitas alterações ao longo do tempo. Uma breve verificação de quais foram as palavras-chave mais usadas como “tags” ou “rótulos de busca” e que podem ser vistas na área da esquerda, em cada página, nos indica que os temas mais citados foram: Percepções, Aqui, Agora, Amor, Vida, Tempo, Oriah, O Convite, Coração, entre outros.

Ao longo desse tempo, quando senti que algum tema estava merecendo uma atenção especial, optei por lançar outro Blog com posts específicos enfocando o assunto em questão. Foi assim que surgiu o Blog “Sou Grato por Isso!” abordando o tema da gratidão; o Blog “Dieta de Notícias” abordando apenas notícias de conteúdo positivo; e o Blog “Vendo o mundo da varanda” abordando minhas percepções depois da prática meditativa matinal realizada rotineiramente na varanda do meu apartamento. Um outro Blog chamado de “Politicamente Integral” foi lançado há algum tempo, mas ainda não recebeu conteúdo significativo, o que pretendo fazer na medida da minha disponibilidade para estudar e pesquisar mais a respeito do tema. O Blog mais recente, que está em fase final de elaboração se chama “Um passo de cada vez” e deverá conter, inicialmente,  minhas percepções a respeito das fases de preparação e de caminhada efetiva ao longo do Caminho de Santiago de Compostela.

Não houve, infelizmente, e me dou conta disso agora, uma celebração formal no aniversário de dez anos do Blog “Três Coisas”, em 21 de outubro de 2015, contando o tempo a partir da data de sua primeira postagem, como seria de se esperar pelo meu apreço por celebrações de todos os tipos. Isso se deu pelo silencio e recolhimento que voluntariamente me impus, a partir do lançamento da Garrafa 496, de 20 de abril de 2015. Naquela ocasião, entrei em ritmo de preparação para percorrer o Caminho de Santiago de Compostela, o que efetivamente ocorreu entre setembro e outubro do ano passado.

Saí do Rio de Janeiro em 08 de setembro e iniciei a opção conhecida como “Caminho Francês” em 10 de setembro, a partir de Saint Jean de Pied de Port, na França, aos pés dos Montes Pirineus e percorri a maior parte do tempo atravessando as belas paisagens espanholas, até chegar em Santiago de Compostela. Durante esse período, quando cheguei ao povoado de Agés, próximo de Burgos, tive que fazer uma interrupção de uma semana, para tratar de tristes questões familiares na Alemanha, em Bremen, voltando ao mesmo ponto do Caminho onde tinha feito a interrupção, para só então concluir o trajeto previsto. Ao retornar ao Brasil, em 26 de outubro de 2015, levei um bom tempo ruminando, processando e degustando comigo mesmo tudo que vivenciei ao longo dos cerca de 800 quilômetros percorridos a cada passo daquela jornada inesquecível. Conheci lugares e pessoas especiais que estarão comigo, para sempre, na memória corporal e afetiva.

Retomei as postagens por aqui somente em abril de 2016,  há apenas uma semana atrás, para celebrar algumas datas especiais, entre elas o lançamento desta quingentésima garrafa.

Além deste texto, elaborei uma ilustração comemorativa fazendo uma composição com imagens encontradas na Internet sobre as quinhentas garrafas. Ao buscar nos posts já enviados uma trilha sonora que pudesse estar à altura da ocasião, optei por incluir algo ainda não postado e que é uma das peças de que mais gosto e que compõe a trilha sonora da minha vida. Como o tema do Amor, em todas as suas formas, é um dos mais abordados por aqui, enquanto dei conta de lançar apenas 500 garrafas com mensagens, o Grupo de Rock Progressivo italiano dos anos 70, “Banco del Mutuo Soccorso”, um dos meus preferidos, nos lembra que o amor faz já 750.000 anos!

Esta Garrafa 500 é portanto o meu presente tanto para os muitos seguidores do Blog, que me enchem de alegria quando costumam deixar seus comentários aqui e ali, quanto para os visitantes eventuais que não deixam outro traço de sua presença, além de um local de acesso em alguma praia distante de algum país, onde a garrafa lançada foi recolhida, e um número registrado nas estatísticas de acesso. São todos, tanto os muito ativos como os mais silenciosos, sempre muito bem-vindos ao Blog.

Se alguém, em algum lugar, em algum momento, encontrando uma dessas garrafinhas, ao bisbilhotar o seu conteúdo:

  • esboçar o mais leve sorriso;
  • ouvir aquele ruído característico de uma ficha caindo dentro da própria cabeça;
  • se lembrar, com carinho, de algum amor antigo ou atual, que já não veja há muito tempo (às vezes cinco minutos parecem uma eternidade); ou
  • for levado a refletir sobre a própria vida, a dos seus semelhantes e sobre os destinos desse nosso pequeno planeta azul…

Já terá valido a pena!

Como sempre gosto de fazer, brinco mais uma vez com as palavras, usando a métrica do haicai:

cinco, cinquenta,
já quinhentas garrafas!
recolheu alguma?

Eduardo Leal

Composição de Eduardo Leal com fotos de autores desconhecidos
Instruções de utilização: Ouvir “750.000 anni fa l’amore” com Banco del Mutuo Soccorso.

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Garrafa 499 – Cinquenta tons de saudade   Leave a comment

Como costumava acontecer desde que se conheceram, e mesmo tendo se passado já muitos anos desde que tinham se visto pela ultima vez, ele tinha adormecido acalentando com ternura a memória de sua imagem quase sempre sorridente, e sonhado com ela na noite anterior àquele dia especial.

Sonhou que tinham se reencontrado brevemente, a sós, e que conversaram animadamente, sem mágoas nem rancores, revendo os detalhes da fina tapeçaria entretecida com os fios da vida de cada um, tanto durante o período em que estiveram próximos, quanto depois que cada um seguiu o seu próprio caminho. Ela estava feliz com as escolhas que tinha feito no passado, e com sua situação atual, e ele se alegrou de verdade com isso. O que aconteceu foi a única e melhor coisa que poderia ter acontecido.

Ele tinha acordado bem cedo, como costumava fazer todas as manhãs. Mas, naquele dia de celebração do seu aniversário, como também já há muito tempo acontecia, não poderia vê-la pessoalmente. Não poderia estar com ela, nem que fosse apenas por alguns minutos. Não poderia segurar suas mãos e nem lhe dar um abraço longo e apertado. Isso estava simplesmente fora de questão.

Abandonando sentimentos de frustração e tristeza que imediatamente inundaram seu coração, mas que de nada serviriam naquela linda manhã de outono, deu um longo e profundo suspiro, e silenciosamente se perguntou: O que poderia ser feito? Como sentir-se um pouco mais próximo, mesmo que fisicamente muito distante? Como lhe enviar boas vibrações e energia amorosa, estando a criatura em outro hemisfério? E como entrar ele próprio em um estado mais positivo, apesar de uma grande e incômoda saudade da amiga aniversariante?

Procurou então agarrar-se a algumas pequenas lembranças, na verdade alguns objetos transformados em relíquias amorosas, que ele sabia tinham sido manuseados e tocados por ela, há muito tempo atrás. Eles ainda guardavam quem sabe algo de sua presença, de sua vibração original, de sua energia, do seu toque. Assim acreditava, e assim podia sentir, quando os invocava em sua memória cinestésica e os tocava de novo também.

Vasculhou suas gavetas e enfiou-se então dentro daquele short que tinha recebido de presente em um dia do seu próprio aniversário, e com o qual ela o havia surpreendido na saída do trabalho. Gostava dele de verdade, e o usava de vez em quando em suas caminhadas diárias pelas redondezas. Fazia isso também para matar a saudade, e sentia-se acompanhado por ela, quem sabe até dentro dela, em cada uma dessas ocasiões. Naquela manhã, entretanto, a título de uma distante e silenciosa celebração naquela data tão significativa, sentiu que só isso não seria o suficiente, já que era uma atitude rotineira. Precisava de algo mais.

Buscou então na sua estante um livro que ela tinha tomado emprestado por algumas semanas, e que tinha utilizado como referência para o seu trabalho de conclusão de curso. No seu interior encontravam-se preservadas diversas anotações feitas com uma versão de sua letra intencionalmente miúda e compactada, para caber e se acomodar nas laterais, no topo e nos rodapés de inúmeras daquelas páginas.

Lá estavam registrados seus comentários, suas observações, ora usando seu próprio código taquigráfico, ora apenas atribuindo uma nota “10” ou um “M” para longos parágrafos assinalados ou sublinhados a lápis de maneira suave: tudo aquilo que tinha despertado sua atenção e interesse, naquela ocasião.

E muitas emoções há muito tempo represadas voltaram com força, com a releitura de cada trecho, com a visão de cada rabisco, imediatamente associadas à memória do som de sua voz, durante os encontros que ocorreram ao longo do processo de pesquisa para aquele trabalho, e após a devolução do precioso livro para o seu zeloso proprietário.

Lembrou-se de que, nas semanas seguintes, seguiram-se diversas conversas, com a discussão das observações de parte a parte, com suas vozes interrompidas por longos silêncios, acompanhados de olhares ora divertidos ora curiosos, e por longas carícias e beijos apaixonados.

Ele nunca teve acesso ao texto final daquele trabalho. Não importa. Ficou feliz em poder contribuir de alguma maneira naquele projeto acadêmico, como ela já tinha feito em ocasião anterior em um projeto seu, elaborando slides para uma apresentação em PowerPoint, que complementaram e ilustraram a monografia entregue no seu curso de pós-graduação. Por algum tempo, tinham sido muito felizes na companhia um do outro. E não é isso que um sentimento de amor verdadeiro nos sugere fazer? Sempre e muito? Aproveitar a companhia do outro, e torcer e contribuir para o seu sucesso?

Sentiu-se melhor assim, tendo definido o seu ritual de celebração especial incluindo essas duas etapas.

Naquela mesma manhã, realizou uma longa caminhada usando seu short-relíquia. E procurou respirar longa e profundamente o ar fresco da manhã, cumprimentado gentilmente cada árvore e pessoa que encontrou pelo caminho que costumava percorrer para chegar até a praia. E sentiu a brisa levemente salgada fluindo entre suas pernas, no tronco suado, no próprio rosto e nos fios do cabelo. Pele arrepiada, permaneceu longamente com o olhar perdido na linha do horizonte, onde os diversos tons de verde e de azul do mar se encontravam com o azul luminoso e profundo do céu de abril. Cinquenta tons de verde, de azul e de saudade. Voltou para casa em paz.

Já com o livro reencontrado, a decisão foi diferente. Apenas alguns momentos de rápida leitura não seriam o bastante. Resolveu fazer uma celebração mais prolongada, à altura da ocasião. Decidiu reler o livro inteiro, ao longo dos próximos trinta dias, mesmo já estando envolvido com a leitura de outras obras em paralelo. E isso fazia todo o sentido também, em função de quem era o seu autor, seu principal mentor em assuntos de PNL, do tema da modelagem de estratégias de sucesso, e do momento profissional que estava vivenciando. Sincronicidade com o Universo, e o simples reconhecimento e aceitação da presença de coincidências significativas, que sempre aconteciam com ele, com ela, e com cada um de nós, sempre e quando nos mantemos atentos para reconhece-las em nossas vidas. E assim foi feito.

Decorridos os trinta dias de releitura e celebração, deu-se conta de que o livro foi o complemento perfeito para as investigações pessoais que estava realizando na ocasião. Alguns trechos mais significativos podem ter sido os seguintes:

“A solução de conflitos relacionados à identidade implica ‘segmentar’ num nível acima ao da própria identidade. Se cumprirmos esse requisito seremos capazes de ampliar nossos mapas de mundo para percebermos a nós mesmos como parte de sistemas mais amplos que estão à nossa volta, e alcançarmos um senso de missão e propósito global.”

“Uma identidade completa é um oceano inteiro, não simplesmente cada peixe diferente que nada nele. A identidade verdadeira de uma pessoa não é uma determinada imagem ou um sistema de medida, mas preferencialmente a luz que torna ambos possíveis.”

“Talvez não seja acidental que tantas pessoas ao longo da História tenham relacionado identidade e espírito com luz. Quando alguém alinha ou identifica a si mesmo com “matéria” ou “espírito”, corpo ou mente, Ego ou Id, o lado esquerdo do cérebro ou o lado direito do cérebro, lógica ou imaginação, estabilidade ou mudança, então essa pessoa está criando um desequilíbrio e um conflito em potencial. Quando alguém identifica a si mesmo com algo mais parecido com a luz, então a pessoa pode ver que o importante é o relacionamento entre esses elementos. Evolução e adaptação, por exemplo, são uma função de um processo de mudança no nível individual e de um processo de estabilização no nível do ambiente mais amplo. A evolução pessoal requer o mesmo equilíbrio de forças nos diferentes níveis lógicos.”

Recordando o sonho que tinha vivenciado há trinta dias atrás, e desejando que um breve encontro daquele tipo pudesse acontecer em algum momento do futuro, rabiscou no seu bloco de notas:

sem nenhum rancor,
conversa animada,
motivos certos.

Eduardo Leal
Pintura de Waldomiro Sant’ Anna – Leitura a dois
Leitura recomendada: “A Estratégia da Genialidade – Einstein” de Robert Dilts, Summus Editorial

Leitura a dois,

Garrafa 496 – Os nós de todos nós   2 comments

Nos últimos dias, mais precisamente no dia 13 de maio, data simbólica remota e recente, já respirando novos ares com a possibilidade de recuperação do nosso país depois de estar submetido a uma espécie de escravatura política ao longo de 13 anos de governos corruptos e de viés autoritário, iniciei a prazerosa leitura de “Relembramentos – João Guimarães Rosa, meu pai” de Vilma Guimarães Rosa, editado pela Nova Fronteira.

Recomendo com empenho essa leitura aos interessados na vida e na obra desse nosso grande escritor brasileiro, que também foi médico de cidade do interior e, mais tarde, ativo diplomata. Ganhou o mundo com suas viagens, seu profícuo trabalho, e suas obras fantásticas. Trata-se de um livro que apresenta detalhes da vida do imortal autor de “Grandes Sertões: Veredas”, como vista pelo olhar amoroso e sensível de sua filha mais velha, ela que também seguiu a carreira de escritora, e que é reconhecida por uma obra que inclui diversos livros de contos. Desta vez, envereda pelas próprias memórias do seu venerado pai, nas palavras da própria autora organizadas com amor e fidelidade, não uma biografia, apenas um “abreviado de tudo”.

Um trecho extraído de um Curso de Extensão Universitária que a autora ministrou na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras, em Londrina, no Paraná, em 1970, atraiu especialmente minha atenção. Fala com beleza e delicadeza a respeito do ofício do escritor e da natureza da própria vida:

“O infindável fio da vida entreprende os homens na travessia das épocas. Ninguém inventa nada. Tudo preexiste e nos sucede. O escritor percebe e reconta, olhando o fio, desenovelando-o, tecendo tramas, rebordando tapeçarias finas. É o seu encargo.”

Estive afastado de minhas habituais brincadeiras com as palavras com a métrica do haicai, desde o ano passado, em grande medida por andar atormentado e mergulhado em tristeza profunda por conta desse período acentuado de trevas e de ausência de esperança que o país vem atravessando nos últimos anos. Confesso que não via solução a curto ou médio prazos para os enormes problemas que desafiam a sociedade brasileira. Mais do que isso, pressentia um ambiente propício a uma prolongada guerra civil fratricida, e já me via de alguma maneira sendo empurrado em direção à clandestinidade, se essa quadrilha de malfeitores não saísse do poder. Agora, já consigo ver alguma luz no final do túnel, apesar de persistirem riscos de retrocesso.  A leitura dessa passagem, entretanto, me trouxe de volta alguma inspiração para me aventurar em um breve haicai:

nós infinitos,
de cada vida, fios
entretecidos.

Eduardo Leal
Foto de autor desconhecido
Leitura recomendada: “Relembramentos – João Guimarães Rosa, meu pai” de Vilma Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira.

Nós de todos nós 3

Garrafa 495 – Tão perto, tão longe…   Leave a comment

Desde o dia em que se conheceram, não se passa um só dia em sua vida sem que ele pense nela, em algum momento, com muito carinho e gratidão. E, no dia do seu aniversário, um dia especial sempre lembrado, ele agradece ao Universo por ela ter nascido neste planeta, nesta nossa época e por aquele encontro mágico que os colocou frente a frente pela primeira vez, há muitos anos atrás. E, também, por ela ainda estar entre nós neste mundo, mesmo que em outro hemisfério, e acompanhada de outras pessoas desconhecidas com quem escolheu compartilhar esse novo trecho do seu caminho.

No mesmo dia, ou em dias muito próximos dessa data, há muitos anos, ele envia mensagens a esse mesmo Universo na esperança de que ela possa de alguma maneira tomar conhecimento de suas palavras, sinta-se muito amada, e possa esboçar pelo menos um leve sorriso.

Esta pode ser uma dessas mensagens colocadas dentro de uma pequena garrafa, que as correntes do mar da Internet podem fazer chegar a uma praia muito distante, ser recolhida intacta, e lida pela pessoa certa com algum sobressalto, reconhecendo a caligrafia no papel desdobrado por entre os dedos trêmulos das mãos, ainda tomadas pela surpresa desse achado… Quem sabe?

Ele gosta de pensar que ela já se deu conta desse delicado ritual de gratidão e, a partir de alguns dias antes e outros depois dessa data, se permite caminhar descalça pelas praias mais próximas do seu litoral e, sentindo a água fria que banha seus pés delicados e o vento fresco que revolve seus cabelos, com olhar curioso na direção da arrebentação, percorre aquela linha em que a água salgada lambe a areia molhada num vai e vem infinito. Entre uma concha e outra, ou entre uma e outra estrela do mar, quando olha com bastante atenção, sempre pode encontrar alguma mensagem colocada com cuidado dentro de uma pequena garrafa colorida e só a ela endereçada. E tomar conhecimento do seu conteúdo não implica, de sua parte, nenhum outro tipo de compromisso. Apenas o simples reconhecimento e recebimento de um afago de um amigo distante, em uma data especial.

A inspiração para o texto desta mensagem surgiu no dia de ontem, durante a leitura de um livro interessante sobre as experiências de uma mulher que percorreu, de maneira ao mesmo tempo alegre e sofrida, há alguns anos atrás, o mesmo Caminho de Santiago de Compostela que ele pretende percorrer em breve. Mais do que um simples relato de viagem, o livro apresenta em suas entrelinhas, isso sim, uma bela história de amor incondicional entre um homem e uma mulher. Depois de um longo suspiro, rabiscou com traços firmes em uma daquelas páginas o seguinte haicai:

em qualquer idade,
quem se ama de verdade:
doce saudade…

Eduardo Leal
Fotos de autores desconhecidos

Sinais ao longo do Caminho Na beira do mar